segunda-feira, 25 de novembro de 2013

UM OURIVES DAS PALAVRAS - TREM NOTURNO PARA LISBOA - LIVRO DO DESASSOSSEGO - CARTA A MEU PAI - O LOBO DA ESTEPE

art by CARLOS BG

Quem tem alma não tem calma (Fernando Pessoa)
Minha alma tem pressa (Mário de Andrade)



Todo argonauta tem uma sina:
"Decifra-me ou te devoro." - Édipo Rei, de Sófocles.


No livro, Trem noturno para Lisboa, de Pascal Mercier/Peter Bieri, e, da ficção da ficção, o mote e epifania do livro: Um ourives das palavras, de Amadeu Inácio de Almeida Prado. Duas obras distintas, lidas separadamente, uma dita o ritmo da outra, resultando um mosaico, intertextualidade e camadas entre os livros: O livro do desassossego - de Fernando Pessoa, Carta a meu pai - de Franz Kafka, O lobo da estepe – de Hermann Hesse

Decifrando o itinerário e intertextualidade do Trem noturno para Lisboa (com as obras citadas acima), retirei do Trem noturno para Lisboa os textos e todas referências contidas na obra de Um ourives das palavras, do suposto médico/escritor: Amadeu Inácio Almeida Prado. Separadamente os li, e daí a analogia com as obras: Livro do desassossego (Fernando Pessoa), Carta a meu pai (Franz Kafka) e O lobo da estepe (Hermann Hesse).

A colcha de retalhos/mosaico que se apresentou na obra: Trem noturno para Lisboa. Segue Gregorius para sua sina, ir a Lisboa, mas, antes de empreender uma viagem, necessitamos de um roteiro, um livro de notas e uma epifania, um mínimo de bagagem, já que não leva nenhuma, leva a si mesmo.

Das intertextualidades entre: (Trem noturno para Lisboa e o Livro do desassossego)

A personagem Gregorius, numa passagem narra o instante que resolve seguir um homem numa Rua da Baixa até o Bairro Alto, sua morada, observá-lo do outro lado da rua, ver suas atitudes, a luz que se acende e a “incerteza”.

Abaixo fragmento da obra: Livro do desassossego. Fernando Pessoa - Página 49 - Editora Brasiliense.

"Descendo hoje a Rua Nova do Almada (¹) reparei de repente
nas costas do homem que a descia adiante de mim.
Eram as costas vulgares de um homem qualquer, o casaco de
um fato modesto num dorso de transeunte ocasional. Levava
uma pasta velha debaixo do braço esquerdo, e punha no
chão, no ritmo de andando, um guarda-chuva enrolado, que
trazia pela curva na mão direita.
Senti de repente uma coisa parecida com ternura por
esse homem. Senti nele a ternura que se sente pela comum
vulgaridade humana, pelo banal quotidiano do chefe de família
que vai para o trabalho, pelo lar humilde e alegre dele,
pelos prazeres alegres e tristes de que forçosamente se compõe
a sua vida, pela inocência de viver sem analisar, pela
naturalidade animal daquelas costas vestidas.
Volvi os olhos para as costas do homem, janela por onde
vi estes pensamentos."


Abaixo fragmento da obra: Trem noturno para Lisboa, Pascal Mercier, página 70 – Editora Record

Agora o único homem que estava no bar além dele pagava a conta e saía. Com uma pressa súbita que nem ele próprio compreendeu, Gregorius também pagou e seguiu o homem. Era um homem idoso que puxava de uma perna e parava de vez em quando para descansar. Gregorius o seguiu mantendo uma grande distância até o Bairro Alto, até ele desaparecer atrás da porta de uma casa estreita e sórdida. Uma luz se acendeu no primeiro andar, a cortina se abriu e o homem estava na janela aberta, um cigarro na boca. A partir da escuridão protetora de uma porta, Gregorius olhou para dentro do apartamento iluminado. Um sofá com estofados de um tecido de ‘gobelin’ gasto. Duas poltronas que não combinavam. Uma cristaleira com louça e pequenas figuras de porcelana. Um crucifixo na parede. Nem um único livro. Como era ser esse homem?
Depois que o homem fechou a janela e puxou a cortina, Gregorius saiu do recuo. Ele perdera o rumo e entrou na primeira viela que descia. Nunca seguira ninguém daquela maneira, pensando em como seria viver aquela vida estranha em vez da própria. Era uma forma totalmente nova de curiosidade que despertara dentro dele, ela combinava com aquela nova forma de lucidez que ele experimentara na viagem de trem e com a qual desembarcara na Gare de Lyon em Paris, ontem, ou quando quer que tivesse acontecido.
De vez em quando, ele parava e olhava para a frente. Os textos antigos, o seus textos antigos eles também estavam plenos de personagens que viviam uma vida. Ler os textos e compreendê-los também sempre significara ler aquelas vidas e compreendê-las. Por que, então, agora tudo era tão novo quando ele lidava com o português nobre e aquele homem aleijado? Inseguro, ele caminhou pelos paralelepípedos úmidos da rua íngreme e respirou aliviado ao reconhecer a avenida da Liberdade.



“Descendo hoje a Rua Nova do Almada”. (Rua citada por “Pessoa”)  
Gregorius o seguiu mantendo uma grande distância até o Bairro Alto. (Bairro citado por “Mercier”)

Coincide o grau de interpretação e ótica na descrição de ambos autores. O homem que vai pela rua, sob os dois olhares. O primeiro olhar, “Pessoa”, o vê através da “janela das costas” e imagina sua suposta vida, faz seu papel de cronista/poeta. “Mercier” o vê pelas costas “sem uma janela”, o segue, e a distância descreve e contempla sua morada, pequena partícula de uma vida, (...o homem fechou a janela e puxou a cortina,...) sem o tom imaginário e indaga: Como era esse homem? 

Fernando Pessoa responde: Senti nele a ternura que se sente pela comum vulgaridade humana, pelo banal quotidiano...

Mais adiante, o segundo olhar, Gregorius conclui: “Nunca seguira ninguém daquela maneira, pensando em como seria viver aquela vida estranha em vez da própria. Era uma forma totalmente nova de curiosidade...

Respirar e reconhecer a “Av. da Liberdade”.
Traçando os dois itinerários geográficos das obras, percebe-se – pelo mapa de Lisboa (²) -, que o “Pessoa” desce a Rua Nova da Almada (indo em direção a Baixa) e “Mercier” sobe a rua Nova da Almada (indo em direção ao Bairro Alto), cruzam-se ai, os textos e os homens.

Não trato a intertextualidade e as camadas do texto como um plágio, mas sim, como esses textos ficaram impregnados na obra de “Mercier”(trechos do Livro do desassossego de Fernando Pessoa). É público que “Mercier” o leu e nos deu a sua percepção.


Das intertextualidades entre: Um Ourives das palavras e Livro do desassossego.

Paralela ao Trem noturno para Lisboa,  há outra obra, Um ourives das palavras. Lê-la separadamente é um exercício diferente de lê-la em conjunto com o Trem noturno para Lisboa. Há um trabalho hercúleo de “Mercier” – para não fugir a uma citação grega. “Mercier” exerce uma carpintaria de excelência no texto Um ourives das palavras. Uma obra dentro de sua obra, diria até, literalmente, sair da gélida Berna para a abrasadora Lisboa.
Há aqui muito do Livro do desassossego. Reconstrói “Mercier”, com novas tintas, um novo heterônimo para Fernando Pessoa: Amadeu! Dá vida e alma a Amadeu, é nitidamente reflexivo, poético, com alma, vísceras, sangue e ossos, tal qual Fernando Pessoa, com uma qualidade a mais: Amadeu é um ser político, ao contrário de Fernando Pessoa e seus heterônimos que eram apolíticos.

Das Intertextualidades entre: Um ourives das palavras e Carta a meu pai  

(Mercier) vale-se da Carta a meu pai, de Kafka, utilizando o recurso de uma ‘Carta a meu pai’, porém de autoria de Amadeu.
Filho e pai em lados opostos. “Mercier” utiliza, quase Ipsis litteris, o conteúdo da obra de Kafka.   Um, o filho, pelo fim ditatorial de Salazar e toda jovialidade do incerto. O outro, Pai, curvado ao poder, e toda maturidade do incerto. A alegoria da doença de Bechterew, mal que o Pai padecia, posições políticas opostas, curvar-se além da doença, curvar-se ao poder ditatorial de Salazar, curvar-se às duais incertezas.
Amadeu toma a mão à pena e deita as tintas ao papel, a ‘Carta a seu pai’ já não é uma carta inédita. O início da Carta de Kafka e da Carta de Amadeu traz indelével o “temor”. Exatamente o mesmo início – traduzido no temor –, o acerto de contas com o passado, Filho e Pai são exímios esgrimistas, não combatem à moda antiga, como os gládios. A ideia é só ferir o adversário. Ferir até mesmo na ausência, ainda que não recebam as “Cartas”, terá o seu emissor o prazer e o deleite de tê-las enviado, ainda, que o receptor faça ouvidos moucos. Contrariando e alterando o dito popular: “palavras não tão loucas e ouvidos não tão moucos”, é regra entre os esgrimistas, só ferir. Amadeu não faz diferente de Kafka, não baixou a guarda. Tome a estocada.

Das intertextualidades entre: O lobo da Estepe e Trem noturno para Lisboa.
"É preciso, ainda, ter o caos em si mesmo para dar à luz a uma estrela cintilante." (Assim Falou Zaratustra - Friedrich Nietzsche)

Harry Haler, 50 anos de idade, personagem de O Lobo da estepe, de Hermann Hesse, traça seu destino, o acaso, as portas que supostamente se abrem a aqueles que estão em constante busca.
Gregorius, 60 anos de idade, personagem de O trem noturno para Lisboa, de Pascal Mercier, traça seu destino, o acaso, as portas que supostamente se abrem a aqueles que estão em constante busca.
O mesmo mote e epifania de Hesse e Mercier, lado a lado põem Harry (do Hesse) e Gregorius (do Mercier) na busca frenética de algo fora de nós, que justifique qualquer empreitada na vida, ousar, sair do lugar comum, provocar o espanto. Verter a vida por uma janela, buscar a explicação no outro, “outsider” de nós mesmos, não buscamos o caos, ele principia em nós e se encerra em nós. Lobos vestidos por uma fina camada de pele. As metáforas da racionalidade e da fantasia terão, como já disse³ , suas iscas.

Gregorius, companheiro desta viagem que empreendi contigo no mesmo vagão, dividimos os mesmos sentimentos, você foi verossímil.

O autor Peter Bieri (Pascal Mercier) capitaneou bem a nave, lançou velas ao mar, correu perigos, passou por tempestades,  na dúvida seguiu as estrelas,  aproveitou as calmarias e sabe que ‘navegar é preciso’ . Aguardamos “Le silence du monde avant les mots.”  - “O silêncio do mundo antes das palavras.”


¹ Grifos meus
² Vide Google maps trajeto de Gregorius desde a Rua Nova da Almada até Av. da Liberdade.
³ O lobo da estepe – neste blog



VALE A LEITURA.










segunda-feira, 18 de novembro de 2013

A HORA E A VEZ DE AUGUSTO MATRAGA




MatragA




A HORA E A VEZ DE AUGUSTO MATRAGA
João Guimarães Rosa
Editora Nova Fronteira, 1986.

O Velho Rosa sorri ao ver o deleite que me proporcionou com a leitura de Matraga. Assim contado, tim-tim por tim-tim, sem tirar nem pôr, com toda paciência de acender o fogo, assentar-se, calar-se e ouvir a aqueles que somaram histórias, tal qual, dormir com os sonhos. Num átimo ¹.

O abismo do homem. Uma queda e seu percurso. O cadafalso da margem do abismo, o silêncio do vácuo da queda, por fim, o solo.
A primeira fala - após a queda – o murmúrio da dor. A memória e a dor nas entranhas, membros, tronco e cabeça.
Entre o cadafalso e a queda, chicoteado pelas memórias - o cavalo, o selim, a soberba, o suposto poder -, de encontro com o solo. Por baixo de seu próprio olhar, a cegueira de um mundo pequeno, e de um sertão ainda menor.
Pirambeira abaixo, cai o homem. Já não tem nada a sua vista, só um fundo poço de lembranças embaralhadas, não tem mais, sequer, as falácias do jogo de truco.
O sertão das Geraes, pintado com tintas de sua própria autoria, o inexplicável, a roda de sua ordem, os vermelhos indizíveis e suas variações.
Um preto, uma preta recebem em seu abismo um branco, anjo caído, não caiu do céu nem do inferno, mas de um -, (inferno definitivo) ² -.  Vale o instinto de sobrevivência a cuidar de um animal ferido, impotente para o abate e a caça.
Do modo simples ressurge o homem, tem as mãos na terra, não prevarica, come e bebe seu suor. Tem “pertencência” com um novo chão e o que está a sua volta, sente os pássaros, o parto da sementes, o esverdear do plantio, o maduro dos frutos. Tem pai e mãe, pretos.
Mas como tudo é provisório, céu e inferno vêm aos poucos, têm sua hora e vez, Matraga seguirá seu destino, ter sua vez e hora, nem que seja a porrete.
Assim, Matraga segue a eito, matar os piores males que lhe assolaram:  a ignorância e a injustiça. O homem se curará das duas, terá a sua hora e vez, mas, antes da sua hora, sepultará os seus males. Do mal para o bem e vice-versa, ou às vezes os dois, juntos e misturados.

Bem-vindos as Geraes.

Vale a leitura!

(¹) Palavra muito utilizada pelo Velho Rosa, de tão presente, deveria ser exclusiva do mestre.


(²) Fragmento de poema “Murilo Mendes. 



sábado, 2 de novembro de 2013

O LOBO DA ESTEPE - DER STEPPENWOLF

































Art by: Carlos BG

O lobo da estepe – Der steppenwolf
Hermann Hesse
Record, 1986 
Tradução: Ivo Barroso

 

 

 

Man muss noch Chaos in sich haben, um einen tanzenden Stern gebären zu können. (Thus spoke Zarathustra - Friedrich Nietzsche)

 
"É preciso, ainda, ter o caos em si mesmo para dar à luz a uma estrela cintilante." (Assim Falou Zaratustra - Friedrich Nietzsche)


Harry Haler o homem, sentado num degrau qualquer, observaria: Um cão asseado? Uma veste bem talhada? Um andar coeso?    

Harry Haler o lobo, com os pés na estepe, observaria: Uma presa fácil? Um céu entreaberto? Ouviria outros uivos?  Preveria a caos?
  
Há uma segunda porta a nossa espera, não é o caminho do céu, nem tampouco do inferno. Somos mais que uma soma, somos a essência de nós mesmos. Achar o sentido das coisas é fácil, difícil é achar-se no sentido nas coisas.
Uma porta, num momento qualquer, se abrirá e essa porta é uma decisão das tuas somas e das tuas essências, a opção deste ou daquele caminho.
Sede forte quando abrires essa porta, amanhã ela estará em outro ponto, não é o caos que buscamos, mesmo no caos há alguma ordem, portanto fique atento a porta. As metáforas da racionalidade e da fantasia terão suas iscas. Terão o mesmo grau de ofuscamento.
O resultado de uma busca será inevitavelmente a fábula humana, a razão e o sentimento terá, igualmente, um par de óculos a nos nortear ou a nos confundir. O caos dual - sentimento e razão -, ambos com regras, cada qual terá o seu preço, ou ficamos com o sentimento e o seu caos, ou ficamos com a razão e o seu caos.
O impasse diante do dual caminho. Já que lobos e homens coexistem, a tragédia será inevitável, o destino desses dois paralelos, os caos se juntam, coabitam, se enlaçam, debatem e concluem: Somos o caos cada qual com sua particularidade. 
Hesse é inconfundível, permeia nossa mente, conhece nossas entranhas, nos persegue como o “Alfa” da cadeia alimentar. Percebe-nos, e sabe, há mais de homens e lobos em nossas veias do que imaginamos.
Supomos um lobo, insone, a nossa espreita, nos conduzindo por uma estepe, atento aos abrigos, a camuflagem, a espera, ao bote, a fantasia, ao viés e as regras do caos dual.

O velho João Guimarães Rosa, traduzido para o alemão por Curt Meyer-Clason, em todas as suas ‘veredas’, nos daria uma saída que igualmente seria dúbia, um terceiro caminho, igualmente com seu caos, talvez a certeza de uma dúvida, seria esta, mais uma advertência do que uma saída.
Tenha no colete as cartas certas, jogue-as ao léu,  e siga as regras do caos.
Na dúvida, aprenda a rir. 

Bem-vindos à alcateia.

Vale a leitura!