sábado, 30 de março de 2013

LIVRO DO DESASSOSSEGO




Livro do desassossego,
Fernando Pessoa. Brasiliense, 1976. 

Fernando Pessoa inaugura o cronista Bernardo Soares, um semi-heterônimo, que andava às voltas com contabilidades alheias.

Como um Deus do Olimpo, o "Pessoa" cronista.
No Livro do desassossego, talvez a obra com um maior número de referências geográficas de Lisboa do início do século XX. Descreve o autor, no seu trajeto diário, alguns hábitos, cenas comuns, pessoas comuns da vida cotidiana.

Não contente com a obra de um escritor,  de tantas e tantas referências e informações, todo ser vivente, quer e quer, sempre saber mais, não contentes querem-lhe a alma, querem seus passos, pinçam referências, freneticamente saem em busca do itinerário de sua vida.

No 'imaginário coletivo' de "Pessoa", já o julgamos um o ator, quando a obra transcende o homem, é hora de saber: 

Qual o nome de sua água de colônia? 
Qual marca de navalha lhe afeitava a barba? 
Como amarrava os sapatos? 
O dentifrício, qual o nome do boticário? 
A tinta da caneta? 
A medida do chapéu? 
O nome da lavadeira?
O motorneiro do elétrico? 
O grau das lentes dos óculos? 
O prato preferido?
A tasca mais reles que frequentou? 
Fez ou não xixi na Rua da Madalena?
Se guardava, ainda, o pijama riscado? 
No baú haveria um fundo falso? 
Quais os nomes dos moços de fretes -carregadores do baú -? 
Ia aos cafés para o café? 
Os amigos eram ou não de conveniências?  
Realmente criou a frase da Coca-Cola: estranha-se e entranha-se? Porque não quis falar com a Cecília? 
Qual livro Cecília lhe ofertou?
Será que leu Machado? Mário? Carlos? Aquele que disse que a vida não presta.

Sutileza de detalhes da vida cotidiana, quando veste a manta de cronista, suas lentes, ainda ofuscadas, são faróis  de deleites e sofreguidão. Carrega a caneta e o pensamento à mão, não dispõe de nada, além, do cenário, cujas vidas materializam-se na metafísica explicável de suas lentes. 
Seja trôpego, ereto, falso, seja verdadeiro, serão aos olhos do cronista - o simples -, como quer o nosso Velho Braga. Simples derramará palavras ao papel,   lhes pertencendo a partir de então. Terá cada 'facto'¹ cotidiano sob seu domínio e sentimento, retirará o turvo natural para lhe depurar a essência. Alquimia sem manual.

Não tardará em somar as horas, horas que por vezes pertencem a outros, furtado, furtará de outros, as horas e instantes de sua passagem, sem sabe-lo terão diante de si as lentes do cronista.
Nos dará em uma bandeja generosa outras vidas.
Furtar-lhes a vida, não mais pertencem a eles, que sequer sabem dela.        

De tão próximo, o queríamos nosso.

Vale a leitura.

¹ Em respeito ao fato português, terno para nós.

Um comentário:

  1. Isto Célio:" Seja trôpego, ereto, falso, seja verdadeiro, serão aos olhos do cronista - o simples -, como quer o nosso Velho Braga. Simples derramará palavras ao papel, lhes pertencendo a partir de então...Não tardará em somar as horas, horas que por vezes pertencem a outros, furtado, furtará de outros, as horas e instantes de sua passagem, sem sabe-lo terão diante de si as lentes do cronista.
    Nos dará em uma bandeja generosa outras vidas."
    E não é isso que os escritores fazem? Ficcionar a vida. Sempre.

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